Um filme dirigido por Murilo Salles com Leandra Leal.
Baseado na obra de Clarah Averbuck.

Juliano Gomes

Os escritos que habitam a tela no início do filme, que ficam entre os espectadores e as imagens, são uma expressão direta de Camila. Num segundo momento, pulando pra terceira pessoa, eles parecem vir de um narrador externo, de quem "faz" o filme. No final, vemos que Camila escreve também em terceira pessoa; o "personagem-narrador" se desfaz.
Queria perguntar até que ponto o filme se deixa contagiar pela Camila e até que ponto ela se contagia pelo filme. Porque me parece que estas partes são diferentes, que as crises da narrativa são "do filme", de como apresentar este personagem, de como fazer cabê-lo na tela. Sinto uma crise de representação no filme e acho que pra viver isso se escolheu uma personagem de convulsões, de montanhas-russas, pra que haja um "ou vai ou racha".

(Formado em cinema, jornalismo e publicidade na PUC-Rio, Juliano Gomes trabalhou como assistente de direção no longa Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo. Desde então, realiza documentários, ficções e institucionais. Organiza também, desde 2005, o cineclube CINEPUC. Atualmente, é mestrando da ECO-UFRJ e colaborador do DocBlog, organizado pelo crítico Carlos Alberto Mattos. Foi membro do Júri da Mostra Visões do 1º Festival de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro – RIOFAN).


MURILO
A primeira questão é sobre os textos que vão possuindo a tela no início do filme. Esses realmente são escritos da Camila. São todos uma provocação ao Felipe. Há uma ligação direta, os textos estão em “sinc” com ela; vemos os seus dedos digitando e o texto surgindo na tela em seguida.

O primeiro momento de desconstrução é a cena em que ela vai para o Estádio de Futebol. É ali que aparece o primeiro texto de fora: “eu engoli uma pedra. Tem uma pedra dentro de mim. Tem uma pedra. Tudo é dentro”. Esse bonito texto da Viviane Mosé é o primeiro texto que não está em sinc com a ação de Camila e sim com os seus sentimentos.

A primeira intervenção realmente poderosa é logo após ela conhecer o Henry, quando ela está na praia transando com o namorado da amiga. “Nada me resta senão me perder em você, senão morrer um pouco, senão gozar sem saber do que se goza”. Essa fala, que na verdade é da Santa Tereza D’Ávila, é uma violenta ação de um texto sobre a imagem. O texto desfoca a imagem, a sua entrada é avassaladora. O texto possui a imagem. Ali alguém começa a escrever. É ali que começa. É ali que começam todas as questões.

O segundo momento que vc comenta, quando os textos começam a vir na terceira pessoa, começa praticamente só na metade do filme e aparece como uma descontrução. Camila fala em off no presente e na primeira pessoa, enquanto que o texto que aparece na tela é escrito no futuro e na terceira pessoa. É assumidamente uma desconstrução verbal. Queríamos provocar uma sensação de que alguém poderia estar escrevendo aquela fala, que existiria uma outra narrativa por detrás daquelas imagens.

Enfim, Juliano, eu discordo um pouco de você. Esse filme é um filme sobre narrativa, sobre construção de narrativa. Mas, não é porque utilizo um processo de desconstrução, que vai inserindo no filme textos na terceira pessoa e com isso a narração vai sendo paulatinamente tomada por um segundo narrador, que há uma “crise de representação”. Não acho que o personagem narrador se desfaz, pelo contrário, eu acho que ele se constitui. O personagem narrador só se constitui ali no fim. No fim, há uma possibilidade de que aquela segunda Camila seja o personagem narrador. Mas, pode haver outras interpretações também; segundo o Felipe Bragança, aquela segunda Camila sou eu. Eu estou mais para a opinião do Felipe.

Não acho que essa ação de escrever contamina a personagem. É mais do que isso, acho que elas se complementam. É por isso que digo que elas se constituem ao invés de se desfazerem, como você diz. Nada do que é escrito muda a ação da personagem, os textos são muito mais uma complementação da idéia que está sendo narrada. O que está sendo escrito só narra o que a gente está vendo, como na cena final em que Camila sai da festa, entra no ônibus e vai até a casa. Nada do que é escrito faz o personagem mudar qualitativamente. O narrar é uma outra instância, uma instância que está em comunhão com a imagem.

O uso do texto no filme sinaliza esse gradual desvelar de um segundo narrador, de uma segunda instância narradora. Por exemplo, a gente vê em duas cenas uma mão de mulher escrever e-mails de homem. O Daniel existe a partir de e-mails que estão sendo escritos por uma mulher. Toda vez que tem um e-mail do Daniel, com exceção da primeira vez, quando Camila usa o computador do Henry, aparece a mão de uma mulher digitando esse texto. Isso remete a possibilidade de Daniel ser uma invenção sim, dele ser uma coisa da cabeça dela.

Então, eu acho que o filme interage nessas duas camadas, como disse o Felipe Messina, Nome Próprio é um filme em camadas, um filme que fala sobre a paixão e sobre narrativa. As camadas se comunicam, mas não interagem. Elas formam um todo coeso.

Um comentário:

juliano disse...

Obrigado pela resposta, Murilo. Continuemos o papo: o que quis dizer com "crise" se relaciona com como o filme vai fazer para tornar um personagem tão pulsante imagem (pois acho que ele maior que o filme; isto é um ellogio), e também a uma situação atual do fazer-imagens onde se começa a questionar o realismo como possibilidade. E o vídeo é a materialização desta discussão. Sinto isso no filme, especialmente no fim. Minha observação nasce mais da duplicação final do que dos movimentos do texto. Além disso, pessoalmente, acho que a palavra "coesão" não tem muito a ver como sinto o filme. "Coeso" me lembra harmonia, ajuste, coerência e lógica. Gosto mais da sensação que tenho de que é um filme que pode continuar ou terminar a qualquer hora, um bicho que poder engolir o que tiver a sua volta, sinto o "Nome" como algo que está aí, em movimento, aberto pro que der e vier, exposto a "contágios", a reconfigurações que só existem pela disponibilidade que o filme apresenta.
Gosto muito desta conversa. É um prazer. Grande abraço, Juliano

Músicas de Camila